Roberto Sá Filho, sócio da CRTR.ia e autor de “Forjados na Água”
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Apaixonado por História e pelo Flamengo, o publicitário e escritor Roberto Sá Filho lança Forjados na Água, um romance histórico que reconstitui, com rigor e imaginação, os primeiros passos do clube rubro-negro no Rio de Janeiro do fim do século XIX. Inspirado por autores como Ruy Castro, Machado de Assis e João do Rio, o livro propõe um mergulho literário em um período de transformações sociais profundas, onde o nascimento do Flamengo se entrelaça com a construção da identidade carioca e brasileira.
Nesta entrevista ao VoxNews, Roberto fala sobre o processo de pesquisa, a reconstrução do cenário urbano e humano da época e os valores de amizade e coragem coletiva que, segundo ele, continuam definindo o espírito do clube.
VoxNews – Você tem uma longa trajetória na publicidade e agora estreia na literatura com um romance histórico. O que te motivou a contar a origem do Flamengo nesse formato, misturando ficção com fatos reais?
Roberto Sá Filho – A motivação veio de uma paixão antiga, tanto pela história quanto pelo Flamengo. Sempre me intrigou como nossa própria história é cheia de nuances fascinantes, mas muitas vezes esquecidas ou não contadas nas aulas de História. E, quando se trata dos clubes, esse apagamento é ainda mais evidente, só se fala de rivalidade e conquistas mais recentes.
Há alguns anos, ao ler “O Vermelho e o Negro”, do Ruy Castro, me impactei com a força narrativa de um texto documental. Aquilo me marcou tanto, que um dos capítulos leva esse nome em homenagem à obra. A partir daí, comecei a mergulhar mais fundo nesse universo e a perceber como as origens do Flamengo, e de outros clubes, como Fluminense, Vasco e Botafogo, estão profundamente entrelaçadas entre si e com a formação da identidade carioca. O romance histórico foi, então, o formato natural. Ele me permitiu unir a pesquisa densa com a liberdade criativa da ficção, revelando não apenas os fatos, mas o espírito que os motivou. Através da literatura, pude dar voz a personagens esquecidos, reconstituir cenários da cidade e mostrar como a fundação do Flamengo não é apenas uma curiosidade esportiva, mas um capítulo essencial da cultura e da memória do Rio de Janeiro. É um trabalho de resgate, mas também de criatividade.
VoxNews – O livro se passa no final do século XIX, num Rio de Janeiro em transformação. Como foi o processo de pesquisa para recriar esse período e dar vida aos jovens fundadores do clube?
Roberto Sá Filho – Não tenho pretensão de ser um historiador, sou apenas apaixonado por contar histórias. Mas, recriar o Rio de Janeiro do final do século XIX foi um desafio empolgante e nada fácil. A preservação documental da época é fragmentada, muitos registros se perderam, e os que restam, algumas vezes, se contradizem. Diante disso, mergulhei em uma pesquisa ampla e cuidadosa: estudei mapas antigos, jornais da época, registros e, principalmente, documentos históricos ligados ao Flamengo e à vida carioca naquele período. Mas não me contentei apenas com os fatos, busquei também entender o cenário da época, as tensões e características de uma cidade que se modernizava às pressas.
Queria compreender como era o Rio que deu origem ao clube, uma cidade marcada por contrastes sociais, avanços tecnológicos e um desejo pulsante de afirmação cultural. A fundação do Flamengo não aconteceu no vácuo: ela está diretamente conectada a esse contexto efervescente.
Autores como Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio e Coelho Neto, mesmo sem escrever diretamente sobre clubes ou futebol, foram fundamentais para compor esse pano de fundo. Mesmo sem citar o tema, seus textos capturam o espírito de um tempo em que o esporte começava a despontar como um novo símbolo cultural, ainda discreto, mas cheio de potência.
O romance histórico tem a capacidade única de costurar essas camadas de dar voz e corpo ao que os registros oficiais nem sempre contam. O livro parte de fatos reais: eventos históricos, regatas, personagens autênticos. Os poucos personagens fictícios entram de forma pontual, apenas para dar ritmo e fluidez à narrativa. A história está fundamentada na realidade, mas é nas entrelinhas, onde a ficção pode atuar com liberdade e sensibilidade para revelar a alma de uma época única. Foi ali, nesse momento de uma república recente e de escravos recém libertos, que geraram diversas mudanças sócio-culturais, que o livro ganhou força.
VoxNews – “Forjados na Água” fala sobre amizade, pertencimento e coragem coletiva. De que forma esses valores ainda ressoam no Flamengo de hoje — e na cultura brasileira como um todo?
Roberto Sá Filho – “Forjados na Água” é, antes de tudo, uma celebração de valores que não apenas moldaram o nascimento do Flamengo, mas que seguem pulsando no clube e na cultura brasileira. Amizade, pertencimento e coragem coletiva são pilares que, desde as primeiras remadas na Baía de Guanabara, transformaram o Flamengo em algo que vai muito além de um clube: fizeram dele um fenômeno cultural profundamente enraizado na alma do povo.
No romance, esses valores aparecem encarnados em personagens que enfrentam desafios reais de uma cidade em transformação. Estamos no final do século XIX, quando o futebol ainda era um pequeno balbucio social, e o remo representava não só esporte, mas também afirmação, espaço e identidade. Era ali, no esforço coletivo, que se forjava algo maior do que vitórias: forjava-se pertencimento. E isso é o que torna o Flamengo tão singular, sua história nasce da coragem de sonhar juntos.
Essa coragem coletiva e a força dos laços de amizade continuam ressoando no Flamengo atual. O clube, não só a sede social, ou o Maracanã, mas qualquer lugar onde se tenha Flamengo é, até hoje, um espaço de encontro entre diferentes classes, cores, sotaques e histórias de vida. Num país marcado por desigualdades e divisões, o Flamengo é símbolo de união, de superação coletiva, de uma paixão que não se explica, apenas se vive. E o meu livro propõe exatamente isso: uma costura entre os fatos históricos e a liberdade criativa da ficção para revelar o que muitas vezes escapou das crônicas oficiais da época. Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio e Coelho Neto, todos retrataram, à sua maneira, o espírito de um Rio de Janeiro em ebulição. Mas ainda não sabiam que ali, naquele mesmo cenário, germinava um fenômeno que viria a traduzir o Brasil como nenhum outro. Foi nesse vácuo narrativo que a ficção entrou: para dar voz ao que estava vivo nas ruas, nos clubes náuticos, nas rodas de conversa, mas ainda sem nome ou ideia do que viria a ser.
Hoje, ao olhar para trás com esse olhar ficcionalmente lúcido, percebemos que aqueles valores fundadores seguem nos movendo. O Flamengo de hoje, como o do passado, continua sendo sobre coragem coletiva, sobre estar junto, sobre lutar e vencer, não só adversários esportivos, mas adversidades que surgem.
VoxNews – Você foi atleta do Flamengo e hoje é sócio-diretor de uma agência. Como essa vivência pessoal influenciou a construção emocional e estética do livro?
Roberto Sá Filho – O Flamengo sempre foi parte essencial da minha formação pessoal e afetiva. Meus pais se conheceram como atletas do clube, eu segui o mesmo caminho e, hoje, meu filho joga Polo Aquático na Gávea. Existe uma linha contínua, quase mística, que atravessa gerações na minha família e que sempre teve o Flamengo como centro. Ter vestido o manto e sentido, literalmente na pele, o peso da história rubro-negra foi fundamental para compreender a dimensão simbólica que esse clube representa. Não é só esporte, é identidade, é pertencimento.
Por outro lado, minha trajetória na publicidade me ensinou a traduzir emoções em linguagem, a transformar sentimento em imagem, a criar narrativas que tocam e permanecem. O livro nasceu exatamente dessa intersecção: de um lado, o amor visceral por um clube que moldou quem eu sou. E do outro, a paixão profissional de contar histórias que marcam as pessoas. Minha intenção foi que cada página refletisse esse equilíbrio entre emoção crua e construção refinada. É uma obra que carrega tanto o suor de quem viveu o Flamengo por dentro quanto o cuidado de quem gosta de contar uma boa história.
VoxNews – Muitos leitores talvez se surpreendam ao descobrir que o Flamengo nasceu como um grupo de regatas. Que outros aspectos pouco conhecidos da história do clube você acredita que o livro ajuda a revelar?
Roberto Sá Filho – Certamente, muitos ainda se surpreendem ao saber que o Flamengo nasceu como um grupo de regatas, mesmo tendo “Regatas” no nome, e é justamente aí que o livro convida o leitor a mergulhar em uma parte pouco explorada, mas profundamente reveladora da identidade rubro-negra. Com um recorte temporal que vai de 1895 a 1900, ele mostra uma fase fundacional cheia de nuances e episódios marcantes que ajudam a entender não só o clube, mas também o Rio de Janeiro daquela época.
Pouca gente sabe, por exemplo, que o Flamengo foi fundado por um grupo de jovens amigos em uma mesa de bar, no Lamas, que ainda está de pé. E que suas cores iniciais não eram vermelho e preto. Mais do que curiosidades, esses detalhes mostram o clube nascendo de encontros, ideias e ideais, em uma cidade que também estava em transformação, antes da derrubada do Morro do Castelo e das grandes reformas urbanas que mudariam a paisagem carioca.
O livro também destaca o papel das regatas como espaço de afirmação social da juventude da zona sul carioca, e como o bairro do Flamengo era um centro de efervescência cultural e esportiva. Os conflitos e debates internos que antecederam a fundação do clube mostram que o Flamengo já carregava, desde o início, um espírito democrático e inclusivo, valores que atravessaram sua história e se tornaram marcas essenciais da instituição.
Em resumo, a obra ajuda a revelar como o Flamengo foi literalmente “forjado na água”, no esforço coletivo do grupo de remo, e como esse espírito resiliente e apaixonado, nascido na água, moldou o caminho para tudo que o clube viria a representar em terra firme.